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segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Polêmica sobre Arquivo Nacional


Transcrevo abaixo o artigo publicado por José Maria Jardim, professor de Arquivologia da UNIRIO, no Jornal da Ciência, órgão da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e disponível em: http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=76022 sobre a transferência do Arquivo Nacional para o Ministério da Justiça.

"O Arquivo (vivo?) da Nação

José Maria Jardim

No Brasil, a idéia de arquivo é associada, com muita frequência, a de
arquivo morto. A expressão "virou arquivo" designa as pessoas que, por
alguma razão, foram silenciadas por seus assassinos. "Arquivo" e "morte" são
termos associados por grande parte da sociedade brasileira, especialmente
aquela que mais sofre com a falta de informações relevantes para o exercício
dos seus direitos. "Arquivos" têm sido "mortos" sistematicamente ao longo da
história do Brasil, especialmente no e pelo Estado brasileiro.

O reencontro com a democracia nos anos 1980, trouxe um sopro de vitalidade
inédita para nossos arquivos públicos, órgãos tradicionalmente "mortos" na
estrutura da nossa administração pública. Afinal, sem arquivos plenos de
vitalidade, dinâmicos e facilmente acessíveis pela sociedade, como o Estado
pode ser transparente? E sem transparência do Estado, qual democracia
almejamos construir e ampliar?

Os arquivos públicos são territórios do Estado a serviço da sociedade, da
democratização da informação governamental e do exercício do direito do
cidadão à informação e à memória. Seu papel como infraestrutura para a
transparência da administração pública é imprescindível para que a sociedade
controle a atuação do Estado e do governo.

Os arquivos públicos não são apenas um depósito de documentos. São
instituições com múltiplas facetas: cultural, científica, administrativa,
etc. É agência de transparência do Estado e território de construção da
memória coletiva e, ao mesmo tempo, infraestrutura para a produção de
conhecimento científico.

Os arquivos públicos dos governos mais avançados em termos de
transparência
e interação social são infraestruturas governamentais de informação para o
Estado e a sociedade. Trata-se de órgãos supraministeriais com múltiplas
funções de apoio à gestão pública e à produção de conhecimento científico e
tecnológico. São territórios da memória coletiva, cultura e cidadania.

Não por acaso, o primeiro Arquivo Nacional criado foi o da França, em 1790,
logo após a Revolução Francesa. A ideia de organização e, sobretudo, de
publicidade dos documentos do governo por um tipo de instituição até então
inexistente tem suas bases na construção do novo regime. Esse é um marco da
história dos arquivos e da Arquivologia. O arquivo público é neste momento
instrumento da administração do Estado.

Ao longo do século XIX, a formação dos Estados Nacionais traz em seu bojo a
construção de identidades nacionais para as quais é imprescindível uma
"memória nacional". Os arquivos públicos passam também à condição de
depositários e construtores dessa memória nacional. São, nesse momento,
território da História.

A criação do Arquivo Público do Império brasileiro estava prevista na
Constituição de 1824, mas a fundação só ocorreu em 1838, aliás o mesmo ano
de criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB).

Como chama atenção a historiadora Célia Costa, autora da tese de doutorado
intitulada "Memória e administração: o Arquivo Público do Império e a
consolidação do Estado brasileiro", o acesso aos documentos no Arquivo
Público do Império era garantido estritamente ao governo ou usuários que
fossem indicados pelo imperador.

Ao contrário dos arquivos nacionais europeus, a historiadora nos lembra que
o Arquivo Público do Império caracterizou-se muito mais como espaço do
segredo do Estado, perspectiva procedente do período colonial, do que como
um órgão envolvido nos processos de construção da história nacional.

O nome "Arquivo Nacional" só foi adotado em 1911. Ao longo da República, o
Arquivo Nacional, como os demais arquivos públicos do país, sobreviveram na
periferia do Estado. Eram voltados quase exclusivamente para a guarda e
acesso de documentos considerados, sem parâmetros científicos, como de
"valor histórico", ignorando-se a produção documental que resultava de um
Estado com funções cada vez mais amplas.

Neste cenário, os documentos eram acumulados ou eliminados - quase sempre
sem critérios científicos - nos serviços arquivísticos do Estado. Tal
ocorreu - e ainda ocorre em vários setores do Estado brasileiro - em função
da inexistência de políticas públicas arquivísticas.

A ruptura da visão de arquivo público como apenas um depósito de documentos
e a adoção de um novo modelo de gestão envolvendo todo o ciclo documental,
desde a produção até a eliminação ou guarda permanente, só ocorrerá, em
diversos países, após a década de 50 do século passado.

No Brasil, a Lei 8.159 de 8 de janeiro de 1991 garante o marco legal para
essa concepção, incluindo também os arquivos estaduais e municipais. Além de
suas atribuições em relação aos documentos federais, o Arquivo Nacional deve
ainda implementar a política nacional de arquivos, a ser definida pelo
Conselho Nacional de Arquivos (Conarq). Esse Conselho, subordinado ao
Arquivo Nacional, é o órgão central do Sistema Nacional de Arquivos.

O Arquivo Nacional teve grande protagonismo nesse processo, a partir dos
anos 80 e 90, influenciando arquivos estaduais e municipais. No entanto, de
modo geral, nossos arquivos públicos permanecem periféricos no Estado e
pouco visíveis à sociedade. Ainda se caracterizam mais como reserva de
opacidade do que de transparência.

Não se altera uma cultura de opacidade do Estado em apenas três décadas. A
maior parte dos nossos arquivos públicos segue socialmente pouco visível. Na
Europa e Estados Unidos, a abertura crescente dos arquivos a um uso social
mais amplo ganha terreno após a II Guerra Mundial.

Procura-se cada vez mais superar a ideia dos arquivos como espaços
acessíveis apenas a eruditos e cientistas. Por outro lado, as crescentes
demandas sociais pelo direito à informação colocam os arquivos no epicentro
das políticas públicas de transparência. A democratização do acesso aos
arquivos tende a ser cada vez maior e diversificada, mesmo nas sociedades
cujo regime democrático já se encontra mais consolidado.

As demandas sociais pelos arquivos se ampliam e mudam com o uso crescente
das tecnologias da informação e comunicação. Novas fronteiras vêm sendo
conquistadas pelos arquivos, ampliando-se a sua interatividade com a
sociedade mediante programas de difusão via web, incluindo, mais
recentemente, o uso cada vez maior das redes sociais.

Essa perspectiva tem orientado os caminhos do Arquivo Nacional do Brasil
desde a década de 80. Talvez poucas instituições públicas brasileiras tenham
passado por um processo de modernização tão intenso e em tão pouco tempo,
influenciando ações semelhantes nos planos estadual e municipal.

Esse "dever de casa" encontrava limites no fato do Arquivo Nacional ser
subordinado, há décadas, ao Ministério da Justiça. Ao ser vinculado à Casa
Civil da Presidência da República, em 2000, o Arquivo Nacional adquiriu
melhores condições - especialmente políticas e orçamentárias - para avançar
num novo modelo de gestão das informações governamentais. Beneficiou-se
diretamente desse novo cenário o Conselho Nacional de Arquivos, subordinado
ao Arquivo Nacional, responsável pela política nacional de arquivos.

Neste sentido, é um retrocesso político, gerencial e científico a
transferência do Arquivo Nacional para o Ministério da Justiça. Essa
inadequação, vale lembrar, seria a mesma em qualquer outro ministério, dada
a abrangência de atuação da instituição em todo Executivo Federal.

Esse novo destino institucional provavelmente comprometerá frontalmente a
dimensão nacional do Conselho Nacional de Arquivos. Setores diversos da
sociedade brasileira, representantes do mundo acadêmico e de associações
profissionais, vêm expressando seu descontentamento face a essa decisão.

Ainda que fosse mantido na Presidência da República, seriam muitos os
desafios a serem enfrentados pelo principal arquivo público do país para
atuar plenamente na gestão das informações governamentais e torná-las
acessíveis à sociedade brasileira. A política nacional de arquivos ainda
está por se definir. O Sistema Nacional de Arquivos não foi
operacionalizado. O Arquivo Nacional encontra-se distante do que pode e
deve vir a ser, embora tenha acumulado suficiente vitalidade para deixar de
ser um "arquivo histórico" do século XIX e projetar-se como um centro de
informações governamentais do século XXI.

Ao ser excluído da Presidência da República e inserido no Ministério da
Justiça, o Arquivo Nacional protagonizará, uma vez mais, o velho e ainda
insuperado drama brasileiro de periferização dos arquivos do Estado e sua
inevitável invisibilidade social. O Arquivo Nacional provavelmente não
morrerá porque, de alguma forma, aprendeu a sobreviver perifericamente ao
longo da sua história, mas certamente será um órgão aquém de suas
transformações recentes, de suas atribuições legais e da democracia que
buscamos."

Um comentário:

Zita Possamai disse...

Notícia publicada no boletim da Associação nacional de história, em março de 2011:
A mobilização desencadeada pelos arquivistas, notadamente por aqueles que trabalham no Arquivo Nacional, contra o remanejamento deste órgão da Casa Civil para o Ministério da Justiça, terminou por resultar numa série de reuniões que concluíram pela necessidade do estabelecimento de uma política nacional de arquivos. O Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo se comprometeu, em reunião com o CONARQ, em realizar uma Conferência Nacional de Arquivos para discutir e estabelecer esta política. Nossos representantes junto ao CONARQ, a professora Ismênia Martins e o professor Paulo Knauss estiveram presentes na reunião desse Conselho que iniciou o debate e preparativos para a Conferência. Ao invés de participarmos da polêmica pontual em torno de onde deve ficar o AN no organograma do governo, achamos mais importante lutar pela definição de uma política nacional de arquivos, por um plano nacional que defina diretrizes e políticas permanentes para os arquivos públicos e privados do país, que dê uma organização sistêmica aos mesmo e, ao mesmo tempo, defina uma política integrada de guarda documental, pois não se pode continuar na situação atual em que mesmo no interior de cada poder ou de cada órgão da administração pública pratica-se uma política distinta de guarda documental.