Transcrevo abaixo o artigo publicado por José Maria Jardim, professor de Arquivologia da UNIRIO, no Jornal da Ciência, órgão da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e disponível em: http://www.jornaldaciencia.
"O Arquivo (vivo?) da Nação
José Maria Jardim
No Brasil, a idéia de arquivo é associada, com muita frequência, a de
arquivo morto. A expressão "virou arquivo" designa as pessoas que, por
alguma razão, foram silenciadas por seus assassinos. "Arquivo" e "morte" são
termos associados por grande parte da sociedade brasileira, especialmente
aquela que mais sofre com a falta de informações relevantes para o exercício
dos seus direitos. "Arquivos" têm sido "mortos" sistematicamente ao longo da
história do Brasil, especialmente no e pelo Estado brasileiro.
O reencontro com a democracia nos anos 1980, trouxe um sopro de vitalidade
inédita para nossos arquivos públicos, órgãos tradicionalmente "mortos" na
estrutura da nossa administração pública. Afinal, sem arquivos plenos de
vitalidade, dinâmicos e facilmente acessíveis pela sociedade, como o Estado
pode ser transparente? E sem transparência do Estado, qual democracia
almejamos construir e ampliar?
Os arquivos públicos são territórios do Estado a serviço da sociedade, da
democratização da informação governamental e do exercício do direito do
cidadão à informação e à memória. Seu papel como infraestrutura para a
transparência da administração pública é imprescindível para que a sociedade
controle a atuação do Estado e do governo.
Os arquivos públicos não são apenas um depósito de documentos. São
instituições com múltiplas facetas: cultural, científica, administrativa,
etc. É agência de transparência do Estado e território de construção da
memória coletiva e, ao mesmo tempo, infraestrutura para a produção de
conhecimento científico.
Os arquivos públicos dos governos mais avançados em termos de
transparência
e interação social são infraestruturas governamentais de informação para o
Estado e a sociedade. Trata-se de órgãos supraministeriais com múltiplas
funções de apoio à gestão pública e à produção de conhecimento científico e
tecnológico. São territórios da memória coletiva, cultura e cidadania.
Não por acaso, o primeiro Arquivo Nacional criado foi o da França, em 1790,
logo após a Revolução Francesa. A ideia de organização e, sobretudo, de
publicidade dos documentos do governo por um tipo de instituição até então
inexistente tem suas bases na construção do novo regime. Esse é um marco da
história dos arquivos e da Arquivologia. O arquivo público é neste momento
instrumento da administração do Estado.
Ao longo do século XIX, a formação dos Estados Nacionais traz em seu bojo a
construção de identidades nacionais para as quais é imprescindível uma
"memória nacional". Os arquivos públicos passam também à condição de
depositários e construtores dessa memória nacional. São, nesse momento,
território da História.
A criação do Arquivo Público do Império brasileiro estava prevista na
Constituição de 1824, mas a fundação só ocorreu em 1838, aliás o mesmo ano
de criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB).
Como chama atenção a historiadora Célia Costa, autora da tese de doutorado
intitulada "Memória e administração: o Arquivo Público do Império e a
consolidação do Estado brasileiro", o acesso aos documentos no Arquivo
Público do Império era garantido estritamente ao governo ou usuários que
fossem indicados pelo imperador.
Ao contrário dos arquivos nacionais europeus, a historiadora nos lembra que
o Arquivo Público do Império caracterizou-se muito mais como espaço do
segredo do Estado, perspectiva procedente do período colonial, do que como
um órgão envolvido nos processos de construção da história nacional.
O nome "Arquivo Nacional" só foi adotado em 1911. Ao longo da República, o
Arquivo Nacional, como os demais arquivos públicos do país, sobreviveram na
periferia do Estado. Eram voltados quase exclusivamente para a guarda e
acesso de documentos considerados, sem parâmetros científicos, como de
"valor histórico", ignorando-se a produção documental que resultava de um
Estado com funções cada vez mais amplas.
Neste cenário, os documentos eram acumulados ou eliminados - quase sempre
sem critérios científicos - nos serviços arquivísticos do Estado. Tal
ocorreu - e ainda ocorre em vários setores do Estado brasileiro - em função
da inexistência de políticas públicas arquivísticas.
A ruptura da visão de arquivo público como apenas um depósito de documentos
e a adoção de um novo modelo de gestão envolvendo todo o ciclo documental,
desde a produção até a eliminação ou guarda permanente, só ocorrerá, em
diversos países, após a década de 50 do século passado.
No Brasil, a Lei 8.159 de 8 de janeiro de 1991 garante o marco legal para
essa concepção, incluindo também os arquivos estaduais e municipais. Além de
suas atribuições em relação aos documentos federais, o Arquivo Nacional deve
ainda implementar a política nacional de arquivos, a ser definida pelo
Conselho Nacional de Arquivos (Conarq). Esse Conselho, subordinado ao
Arquivo Nacional, é o órgão central do Sistema Nacional de Arquivos.
O Arquivo Nacional teve grande protagonismo nesse processo, a partir dos
anos 80 e 90, influenciando arquivos estaduais e municipais. No entanto, de
modo geral, nossos arquivos públicos permanecem periféricos no Estado e
pouco visíveis à sociedade. Ainda se caracterizam mais como reserva de
opacidade do que de transparência.
Não se altera uma cultura de opacidade do Estado em apenas três décadas. A
maior parte dos nossos arquivos públicos segue socialmente pouco visível. Na
Europa e Estados Unidos, a abertura crescente dos arquivos a um uso social
mais amplo ganha terreno após a II Guerra Mundial.
Procura-se cada vez mais superar a ideia dos arquivos como espaços
acessíveis apenas a eruditos e cientistas. Por outro lado, as crescentes
demandas sociais pelo direito à informação colocam os arquivos no epicentro
das políticas públicas de transparência. A democratização do acesso aos
arquivos tende a ser cada vez maior e diversificada, mesmo nas sociedades
cujo regime democrático já se encontra mais consolidado.
As demandas sociais pelos arquivos se ampliam e mudam com o uso crescente
das tecnologias da informação e comunicação. Novas fronteiras vêm sendo
conquistadas pelos arquivos, ampliando-se a sua interatividade com a
sociedade mediante programas de difusão via web, incluindo, mais
recentemente, o uso cada vez maior das redes sociais.
Essa perspectiva tem orientado os caminhos do Arquivo Nacional do Brasil
desde a década de 80. Talvez poucas instituições públicas brasileiras tenham
passado por um processo de modernização tão intenso e em tão pouco tempo,
influenciando ações semelhantes nos planos estadual e municipal.
Esse "dever de casa" encontrava limites no fato do Arquivo Nacional ser
subordinado, há décadas, ao Ministério da Justiça. Ao ser vinculado à Casa
Civil da Presidência da República, em 2000, o Arquivo Nacional adquiriu
melhores condições - especialmente políticas e orçamentárias - para avançar
num novo modelo de gestão das informações governamentais. Beneficiou-se
diretamente desse novo cenário o Conselho Nacional de Arquivos, subordinado
ao Arquivo Nacional, responsável pela política nacional de arquivos.
Neste sentido, é um retrocesso político, gerencial e científico a
transferência do Arquivo Nacional para o Ministério da Justiça. Essa
inadequação, vale lembrar, seria a mesma em qualquer outro ministério, dada
a abrangência de atuação da instituição em todo Executivo Federal.
Esse novo destino institucional provavelmente comprometerá frontalmente a
dimensão nacional do Conselho Nacional de Arquivos. Setores diversos da
sociedade brasileira, representantes do mundo acadêmico e de associações
profissionais, vêm expressando seu descontentamento face a essa decisão.
Ainda que fosse mantido na Presidência da República, seriam muitos os
desafios a serem enfrentados pelo principal arquivo público do país para
atuar plenamente na gestão das informações governamentais e torná-las
acessíveis à sociedade brasileira. A política nacional de arquivos ainda
está por se definir. O Sistema Nacional de Arquivos não foi
operacionalizado. O Arquivo Nacional encontra-se distante do que pode e
deve vir a ser, embora tenha acumulado suficiente vitalidade para deixar de
ser um "arquivo histórico" do século XIX e projetar-se como um centro de
informações governamentais do século XXI.
Ao ser excluído da Presidência da República e inserido no Ministério da
Justiça, o Arquivo Nacional protagonizará, uma vez mais, o velho e ainda
insuperado drama brasileiro de periferização dos arquivos do Estado e sua
inevitável invisibilidade social. O Arquivo Nacional provavelmente não
morrerá porque, de alguma forma, aprendeu a sobreviver perifericamente ao
longo da sua história, mas certamente será um órgão aquém de suas
transformações recentes, de suas atribuições legais e da democracia que
buscamos."
No Brasil, a idéia de arquivo é associada, com muita frequência, a de
arquivo morto. A expressão "virou arquivo" designa as pessoas que, por
alguma razão, foram silenciadas por seus assassinos. "Arquivo" e "morte" são
termos associados por grande parte da sociedade brasileira, especialmente
aquela que mais sofre com a falta de informações relevantes para o exercício
dos seus direitos. "Arquivos" têm sido "mortos" sistematicamente ao longo da
história do Brasil, especialmente no e pelo Estado brasileiro.
O reencontro com a democracia nos anos 1980, trouxe um sopro de vitalidade
inédita para nossos arquivos públicos, órgãos tradicionalmente "mortos" na
estrutura da nossa administração pública. Afinal, sem arquivos plenos de
vitalidade, dinâmicos e facilmente acessíveis pela sociedade, como o Estado
pode ser transparente? E sem transparência do Estado, qual democracia
almejamos construir e ampliar?
Os arquivos públicos são territórios do Estado a serviço da sociedade, da
democratização da informação governamental e do exercício do direito do
cidadão à informação e à memória. Seu papel como infraestrutura para a
transparência da administração pública é imprescindível para que a sociedade
controle a atuação do Estado e do governo.
Os arquivos públicos não são apenas um depósito de documentos. São
instituições com múltiplas facetas: cultural, científica, administrativa,
etc. É agência de transparência do Estado e território de construção da
memória coletiva e, ao mesmo tempo, infraestrutura para a produção de
conhecimento científico.
Os arquivos públicos dos governos mais avançados em termos de
transparência
e interação social são infraestruturas governamentais de informação para o
Estado e a sociedade. Trata-se de órgãos supraministeriais com múltiplas
funções de apoio à gestão pública e à produção de conhecimento científico e
tecnológico. São territórios da memória coletiva, cultura e cidadania.
Não por acaso, o primeiro Arquivo Nacional criado foi o da França, em 1790,
logo após a Revolução Francesa. A ideia de organização e, sobretudo, de
publicidade dos documentos do governo por um tipo de instituição até então
inexistente tem suas bases na construção do novo regime. Esse é um marco da
história dos arquivos e da Arquivologia. O arquivo público é neste momento
instrumento da administração do Estado.
Ao longo do século XIX, a formação dos Estados Nacionais traz em seu bojo a
construção de identidades nacionais para as quais é imprescindível uma
"memória nacional". Os arquivos públicos passam também à condição de
depositários e construtores dessa memória nacional. São, nesse momento,
território da História.
A criação do Arquivo Público do Império brasileiro estava prevista na
Constituição de 1824, mas a fundação só ocorreu em 1838, aliás o mesmo ano
de criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB).
Como chama atenção a historiadora Célia Costa, autora da tese de doutorado
intitulada "Memória e administração: o Arquivo Público do Império e a
consolidação do Estado brasileiro", o acesso aos documentos no Arquivo
Público do Império era garantido estritamente ao governo ou usuários que
fossem indicados pelo imperador.
Ao contrário dos arquivos nacionais europeus, a historiadora nos lembra que
o Arquivo Público do Império caracterizou-se muito mais como espaço do
segredo do Estado, perspectiva procedente do período colonial, do que como
um órgão envolvido nos processos de construção da história nacional.
O nome "Arquivo Nacional" só foi adotado em 1911. Ao longo da República, o
Arquivo Nacional, como os demais arquivos públicos do país, sobreviveram na
periferia do Estado. Eram voltados quase exclusivamente para a guarda e
acesso de documentos considerados, sem parâmetros científicos, como de
"valor histórico", ignorando-se a produção documental que resultava de um
Estado com funções cada vez mais amplas.
Neste cenário, os documentos eram acumulados ou eliminados - quase sempre
sem critérios científicos - nos serviços arquivísticos do Estado. Tal
ocorreu - e ainda ocorre em vários setores do Estado brasileiro - em função
da inexistência de políticas públicas arquivísticas.
A ruptura da visão de arquivo público como apenas um depósito de documentos
e a adoção de um novo modelo de gestão envolvendo todo o ciclo documental,
desde a produção até a eliminação ou guarda permanente, só ocorrerá, em
diversos países, após a década de 50 do século passado.
No Brasil, a Lei 8.159 de 8 de janeiro de 1991 garante o marco legal para
essa concepção, incluindo também os arquivos estaduais e municipais. Além de
suas atribuições em relação aos documentos federais, o Arquivo Nacional deve
ainda implementar a política nacional de arquivos, a ser definida pelo
Conselho Nacional de Arquivos (Conarq). Esse Conselho, subordinado ao
Arquivo Nacional, é o órgão central do Sistema Nacional de Arquivos.
O Arquivo Nacional teve grande protagonismo nesse processo, a partir dos
anos 80 e 90, influenciando arquivos estaduais e municipais. No entanto, de
modo geral, nossos arquivos públicos permanecem periféricos no Estado e
pouco visíveis à sociedade. Ainda se caracterizam mais como reserva de
opacidade do que de transparência.
Não se altera uma cultura de opacidade do Estado em apenas três décadas. A
maior parte dos nossos arquivos públicos segue socialmente pouco visível. Na
Europa e Estados Unidos, a abertura crescente dos arquivos a um uso social
mais amplo ganha terreno após a II Guerra Mundial.
Procura-se cada vez mais superar a ideia dos arquivos como espaços
acessíveis apenas a eruditos e cientistas. Por outro lado, as crescentes
demandas sociais pelo direito à informação colocam os arquivos no epicentro
das políticas públicas de transparência. A democratização do acesso aos
arquivos tende a ser cada vez maior e diversificada, mesmo nas sociedades
cujo regime democrático já se encontra mais consolidado.
As demandas sociais pelos arquivos se ampliam e mudam com o uso crescente
das tecnologias da informação e comunicação. Novas fronteiras vêm sendo
conquistadas pelos arquivos, ampliando-se a sua interatividade com a
sociedade mediante programas de difusão via web, incluindo, mais
recentemente, o uso cada vez maior das redes sociais.
Essa perspectiva tem orientado os caminhos do Arquivo Nacional do Brasil
desde a década de 80. Talvez poucas instituições públicas brasileiras tenham
passado por um processo de modernização tão intenso e em tão pouco tempo,
influenciando ações semelhantes nos planos estadual e municipal.
Esse "dever de casa" encontrava limites no fato do Arquivo Nacional ser
subordinado, há décadas, ao Ministério da Justiça. Ao ser vinculado à Casa
Civil da Presidência da República, em 2000, o Arquivo Nacional adquiriu
melhores condições - especialmente políticas e orçamentárias - para avançar
num novo modelo de gestão das informações governamentais. Beneficiou-se
diretamente desse novo cenário o Conselho Nacional de Arquivos, subordinado
ao Arquivo Nacional, responsável pela política nacional de arquivos.
Neste sentido, é um retrocesso político, gerencial e científico a
transferência do Arquivo Nacional para o Ministério da Justiça. Essa
inadequação, vale lembrar, seria a mesma em qualquer outro ministério, dada
a abrangência de atuação da instituição em todo Executivo Federal.
Esse novo destino institucional provavelmente comprometerá frontalmente a
dimensão nacional do Conselho Nacional de Arquivos. Setores diversos da
sociedade brasileira, representantes do mundo acadêmico e de associações
profissionais, vêm expressando seu descontentamento face a essa decisão.
Ainda que fosse mantido na Presidência da República, seriam muitos os
desafios a serem enfrentados pelo principal arquivo público do país para
atuar plenamente na gestão das informações governamentais e torná-las
acessíveis à sociedade brasileira. A política nacional de arquivos ainda
está por se definir. O Sistema Nacional de Arquivos não foi
operacionalizado. O Arquivo Nacional encontra-se distante do que pode e
deve vir a ser, embora tenha acumulado suficiente vitalidade para deixar de
ser um "arquivo histórico" do século XIX e projetar-se como um centro de
informações governamentais do século XXI.
Ao ser excluído da Presidência da República e inserido no Ministério da
Justiça, o Arquivo Nacional protagonizará, uma vez mais, o velho e ainda
insuperado drama brasileiro de periferização dos arquivos do Estado e sua
inevitável invisibilidade social. O Arquivo Nacional provavelmente não
morrerá porque, de alguma forma, aprendeu a sobreviver perifericamente ao
longo da sua história, mas certamente será um órgão aquém de suas
transformações recentes, de suas atribuições legais e da democracia que
buscamos."