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sábado, 31 de março de 2007

Entre chapéus, fotos e fantasias de momo: as artimanhas do percurso museal

Este artigo está publicado na Revista do Patrimônio, na qual podem ser encontrados outros textos sobre museus e patrimônio. O site é www.revista.iphan.gov.br

Entre chapéus, fotos e fantasias de momo: as artimanhas do percurso museal
Zita Rosane Possamai[1]

Quando se visita um museu, muitas perguntas podem ser feitas sobre os objetos dispostos nas vitrines, sobre temáticas e abordagens apresentadas nas exposições, sobre os artistas que mostram suas obras, entre uma infinidade de indagações possíveis. Raramente o visitante é conduzido a inquirir sobre o próprio museu, sobre sua trajetória e, muito menos, sobre como, afinal de contas, todos aqueles objetos foram parar ali. E, no entanto, a partir dessas interrogações pode-se encontrar pistas interessantes sobre a relação que homens e mulheres têm estabelecido com essas instituições seculares ao longo do tempo. E, como não poderia deixar de ser, de que maneira grupos, indivíduos e instituições lidam com seu passado e sua memória.
Como compreender a presença no museu de um determinado objeto, quadro ou fotografia? O que fazem esses objetos colocados atrás de vitrines, à distância do visitante, diferentes daqueles que manuseamos em nosso cotidiano, em casa ou no supermercado? O que os torna assim tão diferentes e especiais? Considerando-se que os objetos no contexto de um museu transformam-se em documentos, ou seja, têm a função de fornecer informações sobre a sociedade, percebe-se que também podem informar sobre as motivações que levaram os atores sociais a inserí-los num museu.
O objeto como peça de museu, distingue-se dos demais de duas formas. Uma que o reveste de um discurso enunciado através dos procedimentos de classificação, inventário, etiquetagem; outra quando ele é o resultado de uma escolha, expressa na sua admissão no interior de uma coleção. Essa passagem de um objeto do cotidiano à peça de museu revela motivações individuais ou sociais. Esse percurso pode ser feito através de uma busca efetivada pela instituição - de acordo com seus próprios critérios de coleta e pesquisa - ou pelas doações que são oferecidas ao museu. Dessa forma, o museu e os objetos ali preservados são frutos de uma vontade de conservação[2] levada a efeito por grupos, instituições ou indivíduos. Tudo que é guardado no museu, deve-se a escolhas efetivadas por agentes sociais.
Mas quem são, afinal de contas, esses atores envolvidos? Basicamente, pode-se dividí-los em dois grupos. O primeiro grupo compreenderia as pessoas pertencentes ao quadro da instituição ou que sobre ela exercem um determinado poder e que configurariam o que denomino aqui por campo museal [3], aqueles agentes encarregados das tarefas práticas e simbólicas referentes à gestão da memória atinente ao museu. O segundo grupo abrangeria aqueles indivíduos exteriores ao museu e que, em dado momento ou circunstância, foram buscá-lo para doar um determinado objeto.
De um lado e de outro, motivações, desejos e vontades vão balizando as escolhas do que deva ser considerado peça de museu e, conseqüentemente, configurando ao longo de uma trajetória variável no tempo, um determinado acervo. Nessa perspectiva, pode-se afirmar que o acervo dos museus é o produto das escolhas realizadas por determinados agentes sociais, estando diretamente relacionado às significações que estes atribuem aos objetos, ao próprio museu e ao que este deveria conter.
No entanto, acreditar que essa relação seja igualitária ou, dito de outra maneira, que os doadores detenham o mesmo poder que os agentes do campo museal é, no mínimo, ingenuidade. Como é sabido, salvo exceções previstas como a do legado - na qual o museu não poderia se furtar à aceitação de dada doação - é o campo que detém o poder exclusivo de aceitar ou não um objeto, elevando o seu estatuto à peça de museu. Muito embora, no interior do campo museal possam estar presentes conflitos relacionados a essas escolhas.
Analisar as representações presentes nas narrativas discursivas[4] dos componentes de ambos os grupos, pode contribuir para problematizar algumas das imagens mais emblemáticas que carregam os museus, como aquela de ser um depósito de coisas velhas; pode ainda auxiliar na compreensão de como a sociedade estabelece vínculos de ordem subjetiva com os museus e como o passado e a história são representados por esses atores e, inevitavelmente, veiculados por essas instituições.
Museu guardião
Assim como não cabem mais no guarda-roupa, no armário ou em casa, os objetos em desuso no dia a dia parecem ter um fim único: o desaparecimento. Esta é uma das principais preocupações apontadas por doadores em relação àqueles objetos entregues ao museu. Eles acabariam “indo fora”, “indo para o lixo”. No entanto, levados para o museu eles seriam “guardados”. Ao museu, é delegada a função de guardar, lugar depositário de todas essas quinquilharias que não cabem mais no guarda-roupa, em casa, enfim, na vida dos indivíduos, grupos sociais ou instituições.
Mas não são todos os objetos que são levados ao museu. Notadamente aqueles que perdem a sua utilidade e mobilizam uma vontade de preservação. Num primeiro momento, eles são guardados em casa ou em algum lugar fora do âmbito do museu e somente num segundo momento são doados àquela instituição. Como o indivíduo, obviamente, não guarda todos os objetos que passam pelas suas mãos ou circulam no seu cotidiano ao longo de sua vida, é correto supor que ele opera uma seleção entre as coisas materiais que vai guardar. A significação simbólica atribuída ao objeto é o que possibilita a sua conservação, num primeiro momento em casa e, posteriormente, no museu.
No percurso que vai da guarda em casa para a guarda no museu, porém, o indivíduo atribui ainda um “outro valor” ao objeto. Ou seja, além do valor que ele próprio conferia em casa ao objeto, ele desconfia que no museu o objeto possa receber um outro valor, um valor diferente daquele que ele próprio atribuiu. Alguns depoentes citam esse valor como algo inerente ao fato de o objeto estar no museu, ou seja, ser peça de museu. Essa suspeita mostra a própria significação que alguns indivíduos elaboram em relação ao objeto inserido no contexto museal. Alguns chegam mesmo a citar “antigo” como uma característica que por si só coloca o objeto como de valor para o museu.
Pode-se encontrar, assim, no mínimo três momentos em que são dados significações ou valores diferenciados ao objeto: o primeiro, de ordem subjetiva, é conferido pelo indivíduo a um determinado objeto, a ponto de garantir-lhe a preservação junto de si (afetivo, lembranças da infância, elo com mortos) pelo decurso de certo tempo; o segundo, quando passado um tempo mais prolongado, o detentor do objeto “desconfia” do valor potencial do objeto como peça de museu, devido à observação de suas características de antigüidade, geralmente; o terceiro, finalmente, quando ele é admitido no interior do museu, recebendo as significações do corpo funcional do museu, transformando-se em um dos objetos do seu acervo.
Nesse percurso museal, não são necessariamente aceitas pelo museu as significações atribuídas pelo indivíduo de fora da instituição, porque, em alguns casos, talvez este nem chegue a expressar essas significações, mas sim aquelas que ele considera serem pertinentes para que o objeto seja considerado de valor para o museu, podendo ser as características de antigüidade, mas também outras, como, por exemplo, ser importante para a história do país, da cidade. Enfim, ele tenta expressar o seu ponto de vista e não considera sua própria significação subjetiva, afetiva, por exemplo, passível de fazer parte do museu. Esse aspecto reveste-se de interesse quando, em suas narrativas, os doadores enumeram a importância que o objeto teve para si, mas quando indagados sobre o motivo que os levaram a doar para o museu surgem outras respostas. É como se houvesse, em alguns casos, uma distância entre a atribuição de significado individual e o significado coletivo, atribuído para estar no museu.
É recorrente nessas narrativas que entre as motivações para a doação está também aquela de uma nova organização na vida cotidiana, seja em termos espaciais, mudança de uma cidade para outra ou de uma casa para um apartamento menor, ou de novas situações a serem gerenciadas, como o nascimento e o crescimento dos filhos; o casamento; a introdução de novos materiais a serem utilizados em um culto; a morte de alguém muito próximo. Dispensar essas coisas antigas que não cabem mais no dia a dia, seria uma forma de organizar essa nova realidade a enfrentar, selecionando, excluindo, operando escolhas entre coisas relevantes para lembrar e coisas destinadas a esquecer. Afinal de contas, há um lugar reservado a isso tudo: o museu, depositário dos objetos destituídos de lugar na vida dos indivíduos, mas que, por seu valor, não merecem desaparecer.
Nesse sentido, o museu é representado como um guardião. Guardião dos objetos, mas também dos significados, das lembranças, das memórias, do passado, das lembranças da infância e da juventude que eles carregam, enfim, de tudo que se considere importante para perdurar, “para ficar”, “para não se perder”. Pouco importa se esses objetos nunca mais serão vistos ou se o depoente irá um dia visitar o museu para relembrar aquilo que está depositado com eles. Não importa, pois se sabe que lá está “seguro”, “cuidado”, “guardado”. Se os objetos depositados no museu estão a salvo, pode-se permitir esquecer a sua existência, como ocorreu com alguns depoentes que não recordavam terem feito a doação há vários anos.
O esquecimento da doação feita parece confirmar que junto de si aquelas coisas não teriam mais lugar, seja em espaço físico ou em disposição afetiva ou psicológica para gerenciá-las. Alguns depoentes - depois de relembrarem seus objetos, bem como os acontecimentos e sentimentos a eles relacionados - sentem vontade de revê-los. Mas é importante frisar que a ida ao museu para reencontrar esses objetos é uma mobilização de grande relevância, quase um ritual, que pode ser comparado à visita a um cemitério[5].
“Nós éramos os guardiões”. Esta afirmação mostra o quanto a representação de museu guardião[6] está presente também no interior do campo dos museus. A partir desta ótica, é necessário não apenas esperar aqueles objetos que chegam da sociedade naturalmente, mas buscar objetos julgados como merecedores de preservação no interior dos museus. Em umas narrativas analisadas, na qual uma funcionária do Museu relata que mesmo vendo o lado doloroso de procurar as famílias logo após a morte de um ente querido, imbuía-se da vontade de preservação e solicitava às famílias que doassem alguma coisa à instituição. Para ela, como responsável pela coleta do acervo, o Museu não poderia furtar-se ao seu papel de guardião, o que implicava a prática de procurar os parentes dessas pessoas que ela acreditava que deveriam estar representados no museu.
Um aspecto relacionado ao museu guardião, colocado tanto por doadores como pelos funcionários do museu, é que o museu guarda, mas guarda “para a posteridade”, ou seja, só é dado sentido ao “guardar” se as gerações futuras puderem “ficar sabendo daquelas coisas antigas”. Caso contrário, o objeto “não tem nenhum valor”. Relacionando essa preocupação dos doadores à prática museal, desejam eles que o objeto seja exposto.
Percebe-se, assim, um círculo completo, elaborado a partir das falas dos depoentes: o objeto perde a utilidade no seu cotidiano; passa a ser desprezado, principalmente pelas novas gerações (os filhos, os jovens) e, finalmente, torna-se fonte de conhecimento para aqueles que virão no futuro. Mas aí reside o ponto fundamental da representação do museu guardião. É esse lugar que dará ao objeto o valor necessário para que as próximas gerações o vejam com outros olhos. Ou seja, somente o museu, com a operação de transformação do objeto comum em peça de museu, tem a possibilidade de elevá-lo a um estatuto, que na vida cotidiana ele não tinha. Ou parecia não ter, bem entendido, para aquelas pessoas que não o revestiam das significações daqueles que o guardaram e, posteriormente, o doaram ao museu, pois é justamente por achar que o objeto tem um valor potencial o que faz as pessoas levarem-no ao museu.
As práticas relacionadas à etiquetagem, à catalogação, à classificação, à conservação concretizam a operação de introdução do objeto no museu; a sua transformação em peça de museu. Porém, a exposição, através da qual o objeto será colocado em uma vitrine, configura-se no coroamento do processo de transformação desse objeto no sagrado. Como objeto sagrado, ele passa a ser intocável, seu significado passa a ser inquestionável, pode ser venerado pelo seu significado aparentemente inerente, ou seja, ser peça de museu. Não é à toa que grande parte dos doadores pressiona os funcionários da instituição para verem os seus objetos expostos.
Na exposição o objeto passa a comunicar-se com as novas gerações, uma das preocupações presentes entre os doadores. A relação de representação entre os objetos (visível) e o mundo que representam (invisível) apenas pode ser satisfeita quando estes são submetidos ao olhar[7]. Expô-lo poderia significar, assim, para muitos doadores, tornar possível a relação do objeto com tudo aquilo que desejam evocar, sejam aspectos atinentes à sua própria vida ou à vida de outras pessoas, instituições ou grupos sociais. Ou seja, tornar presente a sua dimensão simbólica, o que representam para além da sua materialidade. Como peça de museu, a sua duração reforça o caráter simbólico até que o objeto seja considerado sagrado. Dessa forma, o sagrado estaria relacionado não apenas aos objetos de culto, mas também quando se opera a escolha do que deve ser perpetuado individual ou coletivamente. O museu, assim, ao receber os objetos escolhidos pelos indivíduos para durarem, ao dar-lhes o estatuto de peça de museu, transformam simples objetos em objetos sagrados.
Este processo fica claro na narrativa de uma das funcionárias do Museu, que se nega a utilizar a escrivaninha do antigo Intendente de Porto Alegre Otavio Rocha. Sua fala demonstra dois aspectos: o primeiro aquele que está relacionado à transformação do objeto em peça de museu, quando ele perde o valor de utilidade, passando a ser um suporte de informações sobre a sociedade, passando a ser um documento. O segundo, quando ele passa a ser também, para a depoente, um suporte de significação simbólica por ser peça de museu. A escrivaninha deixa de ser uma mesa e passa a representar a figura do Intendente Otávio Rocha. Inserido no museu, esse aspecto é reforçado até o objeto ser considerado sagrado, e, nesse sentido, intocável.
Considerações finais
As idéias aqui apresentadas, fruto de investigação pontual sobre uma dada instituição, talvez possam contribuir para repensar o universo dos museus. Em primeiro lugar, problematizar o museu e os acervos significa refletir sobre o campo museal, nos moldes aqui propostos, ampliando-o consideravelmente e ultrapassando suas fronteiras. Isso significa não limitar exclusivamente a um corpo de técnicos especialistas a tarefa de atribuição de valor aos bens culturais a serem preservados nos museus. Implica alargar a discussão sobre esse assunto a um número maior possível de indivíduos e de grupos sociais, possibilitando o surgimento de problemas ainda não contemplados ou enfrentados no mundo dos museus, como aqueles relacionados às subjetividades e às sensibilidades dos atores e grupos envolvidos na formação de determinados acervos. Em segundo lugar, problematizar os museus pressupõe concebê-los como um espaço de luta material e simbólica entre as classes, grupos e etnias[8]. Alçando o museu e seus acervos a essa zona de conflito, pode-se ver o museu menos como um santuário dotado de verdades consagradas e mais como produtor e veículo de narrativas que estão enredadas em interesses, em desejos e em vontades de homens, de mulheres, de grupos e de instituições que um dia nas suas vidas vieram a se importar com os museus e com o lugar que estes ocupam na sociedade.
[1] Doutora em História/UFRGS; Coordenadora do Museu IPA; docente do Centro Universitário Metodista IPA.
[2] GOURARIER, Zeev. Le musée entre le monde des morts et celui des vivants. Ethnologie française, t. 14, n. 1, janv. /mars 1984, p. 67-76, p. 68.

[3] Sobre o conceito de campo, ver BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.; sobre o conceito de campo do patrimônio ver LEWGOY, Bernardo. A invenção de um patrimônio: um estudo sobre as repercussões sociais do processo de tombamento e preservação de 48 casas em Antonio Prado/RS. Porto Alegre, 1992. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul e sobre a discussão do conceito de campo do patrimônio e subcampo dos museus ver POSSAMAI, Zita Rosane. Nos bastidores do museu: patrimônio e passado na cidade de Porto Alegre. Porto Alegre: EST, 2002. Adoto neste texto o conceito de campo museal no sentido de diferenciá-lo de campo museológico, que poderia levar a pensar em um recorte apenas profissional de atuação nos museus. Como refere Pierre Bourdieu, o conceito de campo não se limita a esse viés, é uma rede de relações objetivas, incluindo aqueles agentes que podem interferir nos processos práticos e simbólicos atinentes ao campo. Exemplificando, no caso do campo artístico, estudado pelo sociólogo francês, interferem artistas, historiadores da arte, marchands, críticos de arte, colecionadores, etc.
[4] Algumas narrativas discursivas analisadas e que são base para a escrita desse texto encontram-se em Possamai, op. cit.
[5] DAGOGNET, François. Le musée sans fin. Seyssel: Champ Vallon, 1993, p. 18-19.

[6] A representação de museu guardião aqui apresentada tem não apenas o sentido daquele que “conserva”, mas também aquele que “vigia “ e “protege”. Cabe observar que no dicionário Aurélio a palavra “guardião” é sinônimo de superior religioso de alguns conventos e “guardar” significa também “cuidar”, “vigiar com o fim de proteger”, não apenas deixar depositado, sem risco para a segurança. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Folha de São Paulo, 1988.

[7] POMIAN, Krzysztof. Colecção. In: Enciclopédia Einaudi. V. 1 (Memória-História). Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984. p. 51-86.

[8] GARCÍA CANCLINI, Néstor. Culturas híbridas: estratégias para entrar y salir de la modernidad. Buenos Aires: Editoral Sudamericana, 1995.

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